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A reinvenção do transporte sobre rodas

02 de Maio de 2019

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Você acredita que terá mais tempo livre no dia em que não precisar mais dirigir para chegar ao trabalho, num compromisso ou mesmo no passeio do fim de semana? Numa recente pesquisa de tendências que a Ford fez em 14 países, com 13 mil entrevistas online, 72% dos chamados "millenials" - geração que nasceu entre as décadas de 1980 e 90 - responderam que sim.

Os resultados não foram muito diferentes nas respostas das gerações X e Z, que englobam os que nasceram entre as décadas de 60 e 90. E mesmo entre cinquentões e setentões, que vieram ao mundo no pós-guerra, mais da metade dos entrevistados respondeu afirmativamente.

Por vários motivos, o avanço tecnológico do automóvel anda a passos muito mais largos do que se previa duas décadas atrás. Talvez por isso poucos arriscam como será nos próximos 20 anos. É certo, porém, que a extinção desse ícone tal como o conhecemos está próxima nos países desenvolvidos, mas ainda distante em regiões mais pobres, como o Brasil.

Independentemente do tempo que essa transformação vai levar para acontecer, o modelo do transporte sobre rodas é iminente. E isso faz com que o carro seja hoje um dos maiores símbolos da "futurologia" que todo o cidadão gosta de exercitar.

Em pouco tempo, um carro não terá utilidade se não for pelo menos conectado. Para um horizonte um pouco mais distante, a indústria de veículos e a de tecnologia trabalham em projetos de automóveis conectados, autônomos e compartilhados. Essa transformação começa pela eletrificação dos veículos. Trata-se de uma espécie de primeiro passo para os avanços tecnológicos seguintes. Carros elétricos têm hoje diferentes histórias e perspectivas - tudo depende do país sobre o qual estamos falando.

Para Jaime Ardila, ex-presidente da General Motors na América do Sul e hoje consultor internacional, parece "razoável" imaginar que em dez anos, 30% das vendas de carros em todo o mundo serão de veículos elétricos. E em 20 anos, diz ele, esse percentual poderá estar próximo de 80%.

Com 1,3 milhão de unidades no ano passado, a venda dos chamados modelos eletrificados - híbridos e os que são completamente carregados numa tomada - correspondeu a pouco mais de 1% das vendas globais, segundo cálculos da consultoria McKinsey.

No Brasil, apesar de um expressivo crescimento, de 20,4% em 2018 na comparação com o ano anterior, a venda de híbridos e elétricos somou fatia de 0,2% do total de automóveis licenciados.

Ardila estima que em 2030, as vendas dos modelos eletrificados no Brasil e em todo o Mercosul poderão estar próximas dos 10%. "O desenvolvimento do carro elétrico é conhecido desde o século XIX e é mais simples do que muitos imaginam. Só não tinha seguido adiante por conta do custo das baterias", afirma Ardila, sócio-fundador da Hawksbill, uma empresa de consultoria, criada há três anos e sediada nos Estados Unidos.

Mundialmente, a expansão do mercado dos elétricos acontece à medida que o custo das baterias cai. Segundo Ardila, há 12 anos, as baterias usadas num carro elétrico custavam US$ 10 mil; hoje já estão em torno de US$ 5 mil. "Quando chegarmos a US$ 3 mil teremos a produção do carro elétrico em massa", afirma Ardila, um executivo colombiano com formação na área de finanças e que já morou em dez países durante os 35 anos de carreira, dois quais 30 na General Motors.

No Brasil, a discussão sobre temas que envolvem o uso do carro elétrico, como tributação e desenvolvimento de infraestrutura nas cidades para o carregamento das baterias começou a ganhar corpo no ano passado, com a criação do chamado grupo da eletromobilidade. Com a mudança de governo, porém, as reuniões do grupo foram interrompidas. A última foi em novembro.

"Esperamos que o governo retome essa discussão", afirma Gleide Souza, diretora de assuntos governamentais da BMW e integrante do grupo. "Percebemos em todos os salões do mundo que a eletrificação é o caminho, uma tendência. Trata-se de uma evolução natural", destaca a executiva. Para ela, "toda mudança gera um pouco de resistência porque a chegada de uma nova tecnologia impõe um novo caminho a ser seguido".

 Para a executiva, a situação muda de acordo com o país. No Brasil, a chamada eletrificação veicular tende a demorar mais do que se imaginou há alguns anos. "Quando começamos a discutir o Rota 2030 (o novo programa automotivo) calculava-se que em 2030 em torno de 30% das vendas de carros seriam de modelos elétricos. Mas esse sonho não vai acontecer", diz.

A tecnologia da eletrificação prevê veículos híbridos - que têm um motor a combustão que alimenta o outro, elétrico -, puramente elétricos (que precisam de tomada) e os chamados híbridos plug-in - que funcionam com dois motores, mas podem ser também recarregados na tomada. Além disso, têm sido testados em alguns países os veículos de célula de combustível, que convertem hidrogênio em eletricidade por meio de processo eletroquímico.

O ano de 2017 marcou o grande salto da eletrificação veicular no mundo. A China puxou essa tendência por conta de novas regras impostas pelo governo. Em 2017, o país registrou crescimento de mais de 70% no mercado de elétricos. A Noruega é, no entanto, hoje, o país com a maior participação de modelos elétricos no mercado, com fatia de 58% das vendas de carros em março.

Incentivos fiscais generosos colocaram a Noruega - onde os preços de automóveis são elevados - na liderança desse mercado. Com o crescimento das vendas, muitos se perguntam, agora, até quando os incentivos serão oferecidos nesse e em outros países. Na Europa, o consumidor consegue bônus em torno de € 5 mil a € 6 mil num carro elétrico. O Brasil pode estar fora desse contexto. Mas inova em outros. Há poucos dias, a Toyota anunciou a produção de um Corolla híbrido a etanol em Indaiatuba (SP).

Em todas as partes do mundo, a evolução tecnológica tende a ir mais rápido do que as decisões políticas para a adaptação das cidades. No Brasil, a BMW decidiu instalar seus próprios pontos de recarga. Somente este ano, a quantidade de postos vai aumentar de 110 para 160. Para criar essa rede, a montadora alemã faz convênios com redes de supermercados, shopping centers, bancos e hotéis.

Segundo Gleide, a discussão começa a chegar nas prefeituras de alguns municípios. "Em grandes cidades, os parquímetros, que cobram pelo estacionamento, podem se converter em pontos de recarga", destaca.

No caso dos carros autônomos, não basta o veículo evoluir para funcionar sem motorista. Toda a infraestrutura das cidades também precisa passar por profundas transformações. E, de novo, o desenvolvimento tecnológico tem andado mais rapidamente do que as decisões políticas.

O nível de automação começa quando o veículo "percebe" que você cochilou e coloca o carro novamente na pista da rodovia. Essa tecnologia já está disponível em importados de luxo que chegam ao Brasil. O carro atinge o chamado nível 5 - o máximo da automação - quando a presença do motorista ao volante pode ser dispensada. No caso, volante é também dispensável. Essa fase ainda está em testes na Europa e Estados Unidos.

Ardila prevê que daqui a dez anos em alguns países os carros circularão sem a participação do motorista em diversas situações. "A questão é quando chegaremos ao nível 5, ao momento em que você digita a mensagem no seu celular e um veículo aparece para te levar sem ninguém ao volante", afirma. Para que isso aconteça, os veículos terão que "conversar" entre si. Essa comunicação precisa envolver também semáforos, faixas e o próprio pedestre.

Em Miami e São Francisco, a Ford testa entregas de pizzas em carros autônomos. E no Brasil, caminhões Volvo sem motoristas trabalham na lavoura de cana-de-açúcar. Para Ardila, em dez anos, o mundo assistirá à autonomia em veículos de carga numa frequência muito maior do que pode se imaginar hoje. Pouco tempo depois, diz o consultor, será a vez também do que ele chama de "robô taxi".

Carros autônomos poderão também, com o tempo, ganhar faixas exclusivas, o que facilitará a convivência pacífica com carros guiados por humanos. Hoje pode ser difícil pensar numa motocicleta autônoma. Ardila prevê, por outro lado, a expansão do mercado de triciclos movidos a eletricidade. Para ele, esse tipo de veículo será útil, inclusive, para o transporte em algumas áreas onde o carro não poderá mais entrar, como regiões centrais de grandes cidades.

A velocidade da evolução dos carros autônomos também depende da região. Recentemente, durante um seminário da indústria automobilística, em Paris, o presidente do conselho da Suzuki na Índia, R. Bhargava, demonstrou preocupação com a extinção da profissão de motorista. "Trata-se de um tipo de trabalho muito importante na Índia", disse, referindo-se não só a profissionais, como taxistas e condutores de ônibus, como os que tiram o ganha-pão do transporte coletivo informal.

Essa evolução tecnológica trará um impacto direto da indústria de autopeças. Os carros elétricos têm muito menos componentes do que os movidos a motor a combustão. Grandes empresas já estão em processo de mudança de vocação, com o desenvolvimento de novos produtos. A dúvida é saber até quando sobreviverão as que hoje se dedicam exclusivamente à produção de peças de veículos convencionais.

"Haverá uma expansão do conceito das autopeças", afirma Dan Ioschpe, presidente do Sindicato Nacional da Indústria de Componentes Automotivos (Sindipeças). "As empresas estão se reinventando", destaca. Ioschpe cita o exemplo da Cummins, tradicional fabricante de motores dos EUA que começou a explorar outros segmentos, como soluções de gerenciamento de frota. "O que parece risco pode também ser uma oportunidade", afirma.

O Sindipeças começa, inclusive, a receber, como novas associadas, empresas que produzem itens necessários nos carros de hoje, mas, segundo Ioschpe, "impensáveis" no passado. Entre os novos sócios da entidade está a Logigo, especializada em sistemas de conectividade e entretenimento.

Ardila estima que a renovação de toda a frota que circula no mundo levará pelo menos 40 a 50 anos. Por isso, haverá, durante muito tempo, espaço no mercado para fabricantes de peças de carros tradicionais. Ele prevê, no entanto, que fornecedores mais fortes vão, aos poucos, abandonar o negócio tradicional para se dedicar às novas tecnologias.

Não há dúvidas que nesse novo cenário o trabalho nas fábricas, cada vez mais automatizadas, vai mudar. "O metalúrgico não será o mesmo, assim como profissões novas vão surgir não necessariamente nas montadoras", afirma Luiz Carlos Moraes, presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea).

Para o professor titular do departamento de engenharia da Escola Politécnica da USP, Mario Sergio Salerno, o engenheiro será o que menos vai sofrer porque é o tipo de profissional versátil. Salerno lamenta, por outro lado, ver o Brasil fora do desenvolvimento das novas tecnologias. "Essas têm sido decisões tomadas apenas nas matrizes das montadoras", destaca o professor.

Mas a evolução tecnológica dos veículos só será completa quando os carros puderem se integrar aos conceitos de mobilidade. O carro como serviço ao invés de uma propriedade é um conceito em expansão e que ganha cada vez mais adeptos com empresas como Uber, Lyft e as próprias montadoras. A lógica do futuro será ter carros em circulação 24 horas por dia e não estacionados em garagens.

Quem quiser dirigir uma bela Ferrari ou um Lamborghini, continuará a fazê-lo, como esporte. Como alguém já disse na indústria, ter um carro como hobby será como ter um cavalo ou uma lancha. Os demais embarcarão em veículos compartilhados, como se faz hoje nos aviões. Talvez nesse dia os projetos urbanísticos das cidades se voltem não tanto aos carros, mas, finalmente, aos cidadãos.

Valor Econômico - 02/05/2019

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