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Fiat e Betim

12 de Julho de 2021

Artigos

Por Vittorio Medioli Empresário e prefeito de Betim.

Extraído do Jornal O Tempo 11/07

Grande expectativa, hotéis de Belo Horizonte lotados, delegações que vinham de todo o Brasil e da Europa. Os táxis, com seus bancos de molas e um forte cheiro de gasolina, eram poucos pra tanta gente; ônibus soltando fumaça e com garotos pendurados no para-choque. Os motoristas de carro a cada declive soltavam a banguela para economizar, nas viradas de esquinas usavam a mão para indicar a mudança de direção e também com gestos recomendavam prudência e diminuição de velocidade. Os Galaxies pretos, da Ford, e os Dodge Darts, estes com roncos intimidadores, mostravam os poucos “da grana” em circulação. Os Pumas conversíveis desfilavam com a juventude abastada. 

O comportamento e o sotaque, naquela época, distanciavam cariocas, paulistas e mineiros de forma tão definitiva que dispensava qualquer dúvida. De lá pra cá, a língua e o sotaque mudaram. O mineiro de 1976 era quase incompreensível. Com palavras cortadas ao meio, “erre” que rolava na garganta, entre “trem”, “uai”, “sô”, o mineiro era aquele que menos se esforçava para entender um italiano e para adequar a fala a uma forma que desconhecia. O português mineiro, especialmente dos homens nas ruas, era “árabe” para mim, enquanto em São Paulo, altamente povoada de italianos, eu parecia estar em casa. 

Os cariocas, com jeito malandro; os paulistas, ricaços e donos da bola, gastadores e esbanjadores; e os mineiros, “incompreensíveis”, pareciam ingênuos e enrolados, mas era como se dizia na Itália: “sapatos grossos e inteligência fina”, enquanto a mão deles era a mais fechada de todas as espécies e gêneros existentes. 

A agitação na capital mineira se dava por conta da inauguração da maior fábrica de automóveis do Brasil, a Fiat (Fabbrica Italiana Automobili Torino), em Betim, que se daria no dia 9 de julho de 1976. Nesse exato dia, o grupo de Turim festejava 77 anos de existência, transcorridos entre duas guerras mundiais e mudança portentosa. Ao comando, sempre a mesma família Agnelli, inoxidável às tempestades e mudanças, com fama de verdadeira “família real”. 

Eu, recém-chegado a Belo Horizonte, vim sem ter uma aula de português, sem contato algum, sem familiares ou conhecidos no continental Brasil, que na época contava com 70 milhões de habitantes e 90% do território coberto de matas e cerrados. Minas, a terra onde nasceu Pelé. 

Chegou, enfim, o dia tão esperado. A inauguração se deu em Betim, improvisando o cenário num galpão, com a presença do então presidente da República, Ernesto Geisel, o governador Aureliano Chaves e todos os demais políticos na ativa, os aposentados e os futuros aspirantes. O governo do Estado de Minas Gerais era sócio e tinha quase metade das ações do empreendimento, numa negociação que teve o governador Rondon Pacheco como protagonista. O palanque de onde proferiram discurso o presidente da República, o governador, alguns ministros e o presidente do grupo de Turim, Gianni Agnelli, esbanjando a fama de “príncipe”, ficou pequeno diante de tantas autoridades presentes. 

Eu estava lá, depois de apenas 45 dias de Brasil. Já compreendia quase perfeitamente 95% do que se falava, mas responder era um sufoco. 

Centenas de empresários e fornecedores italianos da Fiat estavam lá, convocados a tomar conhecimento das oportunidades num polo automotivo em volta da gigantesca fábrica que produzia motores, carrocerias, componentes de toda espécie no mesmo local. O modelo Fiat 147 era o recém-nascido daquele dia. Um carro simples, totalmente mecânico, de sucesso na Itália, se apresentava aqui para disputar com o Fusca, da Volkswagen, o Chevette, da GM, e o Corcel, da Ford, o mercado popular brasileiro. 

Daquele dia tenho lembranças fotográficas, um dia que marcava definitivamente minha vida frente a um desafio enorme de disputar oportunidades que demorariam ainda alguns anos para aparecer. 

Um lapso suficiente para evaporar o exíguo capital, sob a forma de empréstimo que a família me deu.   

O “príncipe” Giovanni Agnelli, mais conhecido como Gianni ou “advogado”, devido aos estudos em direito que concluiu em Turim, eu já tinha visto quando adolescente desfilar nos balneários de Forte dei Marmi, sempre “in buona compagnia”, mas nunca tão perto. 

Naquele dia de 1976, com um sorriso largo, ultrapassou a cerca que dividia os convidados e foi cumprimentar os trabalhadores, que do fundo do galpão assistiam à festa. 

Caberia um relato enciclopédico para contar o que se passou nos últimos 45 anos, retratar a evolução, a gangorra de sucessos e de crises, a luta que representou sobreviver num Brasil em que as empresas dos setores competitivos têm vida extremamente curta. Vi passar debaixo da ponte milhares de tentativas frustradas, daquelas centenas de empresários italianos que estavam na inauguração e muitos acreditaram. Quem sobrou? 

O Brasil com sua inflação de três dígitos, durante décadas, com energia e combustíveis escassos e caros, sem tradição tecnológica, na sua solidão acabou tragando a resistência, a vontade, a esperança, mesmo sem pandemias. 

Às vezes me pergunto como consegui sobrar nessas tempestades e ainda desenvolver outros empreendimentos em todo o Brasil e até fora dele, sem abandonar minha mesa de Betim. 

Naquele julho de 1976 minha expectativa era não fazer papel feio e voltar para a Itália em alguns anos com uma missão cumprida, deixando lugar a outros que me substituiriam. 

Pouco adianta programar uma vida, pois a surpresa é constante, o insólito e o desafio surgem na caminhada, empurrados por uma força invisível. 

Sexta-feira última, 9 de julho, fui convidado pelo presidente Antonio Filosa, como prefeito de Betim, a participar de uma breve e singela comemoração dos 45 anos de funcionamento da fábrica. Quando corriam numa tela as imagens das históricas façanhas, que presenciei ininterruptamente, a memória me levava atrás a reviver por instantes que a decisão de Agnelli, que parecia um absurdo quando decidiu erguer uma fábrica gigantesca no “desertificado” cenário de Betim, acabou por mudar a vida de milhões de pessoas. Formou profissionais e alimentou um círculo virtuoso e surpreendente de crescimento. Os números são espantosos e, mais ainda, a tecnologia que a fábrica atual abriga, com centro de projetos, de pesquisas, de desenvolvimento de produtos complexos. Tudo levado à frente por profissionais mineiros, formados nesse extraordinário e abençoado centro tecnológico de Betim. 

Enquanto as fábricas com 45 anos são dadas como ultrapassadas, a Fiat de Betim, hoje do grupo ítalo-francês Stellantis, evoluiu, se reinventou e se situa entre as cinco maiores do mundo. 

É preciso reconhecer o mérito de milhares de pessoas que, além de trabalharem por um salário, trabalharam movidos por uma paixão com a determinação de vencer obstáculos e que foram, ainda, competentes a ponto de retirar o “im” e deixar apenas o “possível” para comprovar que bons princípios e a firme vontade acompanham os sucessos mais longevos. 

Sem medo: que venham os próximos 45! 

 

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