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O caso das recuperações judiciais no agronegócio

30 de Outubro de 2019

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O agronegócio brasileiro é um enorme sucesso. No decorrer das últimas décadas o país construiu um setor agrícola dinâmico, pautado pelos ganhos de produtividade e pela inserção no mercado internacional. O país tem hoje o maior saldo comercial agrícola do mundo. Em todas as projeções futuras feitas pelos principais organismos internacionais o Brasil desponta como aquele cuja agricultura mais haverá que contribuir para atender as demandas por alimentos, energia e fibras de toda população mundial.

Não há dúvida que parcela importante do processo foi a criação de um amplo Sistema de Crédito Rural que possibilitou ao setor avançar por décadas nos investimentos que contou com apoio intenso do Estado, fazendo uso de amplas linhas de crédito apoiadas por recursos orçamentários que objetivavam reduzir a taxa de juro paga pelo setor.

A oferta de crédito garantiu o crescimento da agricultura de maneira impressionante. Estudo econométrico feito pela MB Associados mostra com clareza que a elasticidade entre o crédito e a produção agrícola é praticamente igual a 1. Ou seja, para cada 10% de expansão do crédito se associa 10% de crescimento da oferta agrícola. O inverso se dará para o caso de uma redução.

Vantagem dada a ação oportunista de poucos imporá custos elevados para a imensa maioria dos agricultores:

As dificuldades fiscais por que passa o governo federal impõem que as transferências para o crédito rural se reduzam progressivamente. No ano corrente houve significativa queda na participação do crédito rural oriundo da política pública (juro controlado) comparado ao de juro livre. Até 2018 a participação do juro livre no crédito era da ordem de 20%.

No Plano Safra de 2019 a participação saltou para 40%, com 60% oriundo de juro controlado. Este movimento deve crescer nos próximos anos. Assim, fica evidente que o setor privado terá papel central no financiamento da safra brasileira. Esse crédito virá do sistema financeiro e de diversas empresas que se conectam ao agronegócio como as grandes comercializadoras internacionais, empresas de insumos agrícolas, revendas.

Há, contudo, um problema que surgiu nos últimos três anos e que pode dificultar sobremaneira a construção de um novo modelo de crédito rural. Trata-se da questão da Recuperação Judicial (RJ) de Pessoa Física na agricultura. Até recentemente o entendimento por parte dos fornecedores de crédito era que o mecanismo da RJ só poderia ser utilizado por Pessoa Jurídica.

Para que um produtor que operasse no regime de pessoa física pudesse fazer uso da Recuperação Judicial teria que registrar sua empresa na junta comercial de sua sede administrativa e só após operar por 2 anos como pessoa jurídica estaria apto a se utilizar da RJ em caso de necessidade. Entretanto, em 2016 um grande produtor do Mato Grosso entrou com pedido de RJ tendo registrado sua empresa poucos dias antes, não respeitando, portanto, o prazo de dois anos que era sobre o qual o mercado alicerçava seu entendimento de riscos e garantias do processo de crédito.

Com isso e na esteira de iniciativas semelhantes envolvendo sempre grandes produtores, iniciou-se um movimento de disputas judiciais sobre a validade da RJ, o que vem criando enorme incerteza jurídica e que trará consequências muito relevantes para o mercado privado de crédito no país.

É importante que se tenha em conta os potenciais impactos da possibilidade de RJ de pessoa física para o mercado de crédito rural. Eles podem ser desastrosos. São vários os aspectos a serem considerados e todos eles contribuem para elevar sobremaneira o custo do crédito para todos os produtores rurais e não apenas àqueles que fizerem uso da RJ. Em primeiro lugar é forçoso reconhecer que haverá mudança na estrutura de garantias exigidas pelos credores. A hipoteca da terra será evitada pelos fornecedores de crédito como objeto de garantias, uma vez que durante o pedido de RJ ela não poderá ser executada. Assim, nesse ambiente novo, os instrumentos que tenderão a ser usados são o da alienação/cessão fiduciária e o patrimônio de afetação recentemente introduzido pela Medida Provisória 897.

A fragilização das garantias também poderá ter impactos graves sobre o principal instrumento viabilizador do acesso ao crédito pelo produtor rural até o momento: a Cédula de Produto Rural (CPR), especialmente na modalidade de liquidação com entrega de produto, uma vez que este tem sido considerado bem essencial nas RJs.

Em segundo lugar, o risco percebido pelos credores para todos os produtores rurais irá subir, promovendo ampla reclassificação de risco dos mesmos. Os custos processuais de uma RJ associados à incerteza quanto a recuperação do crédito elevará o risco da concessão e, com isso, o juro do crédito rural. Pelas regras da Basileia os bancos são obrigados a provisionar recursos crescentes conforme o risco do crédito aumenta. É evidente, portanto, que maior provisionamento implicará em menor disponibilidade de crédito aos agricultores. Em terceiro lugar é certo que haverá uma elevação nas exigências contábeis dos produtores rurais, equiparando-se aos de qualquer empresa, incluindo a auditoria dos balanços. Considerando esses efeitos, além do aumento do custo, haverá também redução no volume de crédito destinado ao produtor rural.

A análise de alguns processos que estão nos tribunais com pedidos de RJ de produtores que operavam como pessoas físicas e que entraram com pedido sem respeitar o prazo de dois anos, indicam que o Valor Presente da dívida, aplicando-se as condições dos planos de recuperação, é uma fração da dívida existente, em que pese a dificuldade de se obter dados financeiros detalhados desses processos. Em alguns casos, o Valor Presente da dívida responde por menos de 20% da mesma e também uma fração do valor da terra em garantia. Em certos processos não há, também, um problema de solvência, de vez que os ativos existentes, mesmo sem estarem atualizados a mercado, superam a dívida declarada. Em alguns casos parte da dívida foi constituída para comprar terras.

Como visto, o impacto no mercado de crédito da aceitação da Recuperação Judicial de Pessoa Física pode ser tão profundo que o que se conhece hoje e que prevalece há décadas poderá vir a ser dramaticamente alterado, fazendo com que custos, limites, acessibilidade, alavancagem e garantias venham a ter condições muito mais próximas daquilo que é praticado na relação dos financiadores com agentes de outros setores da economia. A vantagem proporcionada a ação oportunista de poucos imporá custos elevados para a imensa maioria dos agricultores.

 

Fonte: Valor Econômico – 30/10/19

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