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Reformas no mercado de GLP e seus riscos

16 de Agosto de 2019

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O governo brasileiro tem se empenhado em sinalizar o objetivo de baratear o custo da energia, destacando os seus impactos potencialmente positivos sobre a renda das famílias e a competitividade do setor industrial.

É inegável o mérito do objetivo. Para a sua consecução, no caso da indústria de óleo e gás, a agenda de propostas envolve a busca de maior competição que seria fruto de duas grandes etapas de reformas. Por um lado, as reformas estruturais através da redução do poder de mercado da Petrobras (venda de ativos no refino, na distribuição de derivados e na infraestrutura de transporte) permitiriam a consequente e esperada entrada de um número maior de agentes econômicos. Por outro lado, as reformas regulatórias criariam um novo regime de incentivos e um novo padrão de concorrência. Estes dois movimentos de reforma não estão dissociados, e a qualidade de sua implementação terá grande influência no resultado.

Uma ilustração exemplar da necessidade de conciliar sequencialmente os passos de reformas estruturais e regulatórias com a atração de investimentos e o aprimoramento das condições de competição é o mercado de GLP (Gás Liquefeito de Petróleo). O GLP tem uma importância crucial para as famílias, por ser o combustível para a cocção de alimentos da maioria da população. Tal característica, muito mais marcante no Brasil do que em outros países, é explicada pelo insuficiente desenvolvimento dos dutos de distribuição de gás canalizado. Por esta razão, o mercado de GLP é suprido por distribuidores e revendedores em todo o país, sem que sejam noticiados problemas de ruptura de seu fornecimento.

Apesar do mercado de distribuição de GLP ser concentrado, destaca-se que há rivalidade entre as firmas líderes e, no plano regional, existem diferenciadas estruturas de mercado, com graus de concentração diversos, que variam bastante de um Estado a outro.

A melhoria das condições de concorrência pode e deve ser sempre perseguida. Entretanto, algumas medidas que estão em discussão no mercado de GLP apontam para uma previsível desorganização do mercado, colocando em risco a garantia do abastecimento e, sobretudo, a segurança operacional associada à movimentação e manuseio do produto.

Algumas medidas propostas pelo CNPE e ANP parecem não atentar, com a devida precisão, para as especificidades setoriais e para as condições de concorrência. Duas delas, pautadas pela tese não demonstrada de incremento da competição com benefícios ao consumidor, causam forte preocupação: o enchimento fracionado dos botijões e a supressão da marca.

Enchimento fracionado de botijões e supressão da marca trazem receio sobre manuseio e garantia de abastecimento

O objetivo de autorizar o enchimento fracionado dos botijões parte da ideia de que a liberdade de escolha do consumidor, a qualquer tempo e lugar, provocaria uma redução de preços. Ou seja, não seria necessário promover a troca de botijões vazios por cheios; a qualquer instante o consumidor, que em tese ainda disporia de informações completas, perfeitas e em tempo real de todos os preços de revendedores, poderia retirar seu botijão em uso e "completar o tanque", usando a analogia já feita para uma comparação equivocada da dinâmica de abastecimento da gasolina e etanol com aquela observada no GLP.

Os problemas de segurança operacional decorrentes da movimentação irrestrita de GLP e os riscos de acidentes já deveriam apelar para uma análise muito mais cautelosa dessa proposta. Mesmo considerando que a maioria dos consumidores possa não optar por uma solução como essa, por razões práticas e pelo atual nível de qualidade do serviço de fornecimento do produto, os custos de fiscalização da conformidade das entregas tende a ser muito maior para o regulador.

As medidas parecem dar menos peso a um aspecto que já favorece a escolha do consumidor. No mercado de GLP existe, há anos, o instrumento da portabilidade. A cada mês são comercializados cerca de 35 milhões de botijões de 13 kg, sendo que cerca de 25% desse total são objeto de troca de fornecedor; isto é, a cada compra o consumidor pode eleger o fornecedor que considerar o mais conveniente, sem qualquer custo de transação, pois isto já é feito de maneira transparente para o funcionamento do mercado. Além da portabilidade da marca, há também a portabilidade de cilindros de capacidade igual ou inferior a 13 kg.

Esses dispositivos, já previstos na regulamentação setorial, definem o padrão de competição e o comportamento do consumidor. E, por tal razão, a marca fixada no botijão cumpre um papel importante para as condições de competição. A marca das distribuidoras, gravada em alto relevo em cada botijão comercializado, fornece proteção aos consumidores e rastreabilidade com relação a eventuais problemas de qualidade do produto, além de ser de responsabilidade integral das empresas de distribuição. Tal aspecto pode ser considerado como um fator de competitividade entre empresas rivais, pois impõe a necessidade permanente de investimentos na prestação de serviços, garantia da qualidade e conservação dos recipientes.

Cabe sublinhar que uma intervenção preventiva das autoridades de regulação e/ou de defesa da concorrência no setor deveria ter como ponto de partida uma análise concreta das eventuais distorções operacionais e competitivas identificadas no funcionamento do mercado nas condições atuais. Ou seja, as novas diretrizes setoriais e resoluções do regulador deveriam contemplar os custos que serão incorridos pelos agentes econômicos, bem como os custos de regulação, fiscalização e enforcement.

Uma agenda que tente executar, simultaneamente, um conjunto amplo de reformas patrimoniais, estruturais e regulatórias corre sério risco de comprometer a segurança operacional, a garantia do abastecimento e o valor esperado de venda dos ativos, pois a incerteza com relação a mudanças de cunho regulatório serão, sem sombra de dúvida, precificadas pelos potenciais novos entrantes.

Valor Econômico - 16/08/2019

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