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Um novo futuro para o etanol

09 de Julho de 2019

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Nas próximas semanas, os engenheiros da fábrica da Toyota de Indaiatuba, no interior de São Paulo, vão finalizar os testes da linha de produção do novo Corolla, primeiro carro com a tecnologia híbrida flex do mundo. A novidade é que o sedã trará dois motores: um que rodará com gasolina e etanol, e outro com energia elétrica. Concebido em 2015, o veículo híbrido flex chegará às concessionárias em outubro com a promessa de — quando rodar abastecido com etanol — ser o carro menos poluente a circular no planeta.

Ao usar um combustível oriundo de fonte 100% renovável, o carro emitirá cerca de 30 gramas de gás carbônico por quilômetro — um veículo movido exclusivamente a gasolina libera 145 gramas por quilômetro, e um elétrico, considerando todo o ciclo necessário para a produção de energia, emite em média 65 gramas. Para produzir o modelo híbrido flex, a Toyota investiu mais de 1 bilhão de reais em tecnologia e na modernização da fábrica de Indaiatuba, projeto que envolveu times do Brasil e do Japão. “O futuro da mobilidade está no etanol. Além de ser uma fonte renovável, ele interage com as novas tecnologias automotivas, como a energia elétrica na forma de combustível”, diz Ricardo Bastos, diretor de relações governamentais da Toyota.

A tecnologia híbrida flex chega ao mercado num momento em que a indústria de etanol está em fase de reconstrução, após uma crise que levou 120 usinas a fecharem as portas. O mercado de etanol sofreu um duro golpe de 2011 a 2014, no governo da ex-presidente Dilma Rousseff, quando a política de preços da Petrobras foi utilizada para tentar controlar a inflação. Por determinação da presidente, os preços do óleo diesel e da gasolina foram protegidos das variações do valor internacional do petróleo. Isso gerou prejuízos de mais de 200 bilhões de reais à Petrobras no período.

A manobra afetou em cheio a indústria sucroalcooleira, que perdeu competitividade e viu o consumo de etanol cair mais de 30%. “Desde os anos 70, com o ProÁlcool, esse mercado vem apresentando grande volatilidade, resultado da falta de política dos inúmeros governos que passaram por Brasília”, diz Plinio Nastari, presidente da Datagro, consultoria especializada em mercados agrícolas e membro do Conselho Nacional de Política Energética.

A política de preços da estatal só foi liberada em 2016, já no governo de Michel Temer. Logo em seguida veio outra medida em favor do setor de etanol. Em 2017, o governo Temer lançou o RenovaBio, uma nova política de combustíveis, com entrada em vigor programada para 2020 e que deverá trazer investimentos ao longo de uma década para a indústria sucroalcooleira. O principal objetivo do programa é reduzir as emissões de gás carbônico na atmosfera com o aumento da produção e do consumo de energias renováveis — ou seja, outros combustíveis verdes, como o biodiesel e o etanol à base de milho, ainda incipiente no Brasil, serão beneficiados.

A meta estabelecida é que, até 2028, a matriz de combustíveis do país terá de diminuir em 10% as emissões de carbono em relação ao patamar de 2018. “Essa é uma demanda do mercado. Os consumidores e os investidores querem combustíveis menos poluentes”, diz Evandro Gussi, presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar, conhecida como Unica.

Funcionará da seguinte maneira: a usina que se inscrever no programa deverá ser certificada por uma firma inspetora, cadastrada na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Hoje, são cinco empresas em atuação no país, entre elas a consultoria KPMG, que se credenciou à ANP no fim de junho. No processo de certificação, as usinas farão um inventário das emissões de carbono de suas operações, do manejo do plantio de cana às emissões da frota de carros e caminhões da empresa.

A unidade inspecionada receberá um certificado com uma nota de eficiência energético-ambiental, que poderá ser convertido em créditos de descarbonização — chamados de CBios — com validade de três anos. A quantidade de créditos leva em consideração o volume de etanol produzido. Cada CBio corresponde a 1 tonelada de carbono que deixa de ir para a atmosfera com a utilização de biocombustível, na comparação com seu correspondente fóssil. Na prática, o papel nada mais é que um lastro ambiental, que poderá ser negociado em bolsa, e será uma nova fonte de receitas para as usinas. “Quanto melhor a nota da usina, mais créditos poderão ser comercializados, criando um incentivo para a modernização da empresa”, diz Fernando Lopes, presidente do Instituto Totum, de São Paulo, uma das firmas inspetoras já credenciadas.

Aumento de produtividade

Os potenciais compradores de CBios devem ser as produtoras e as distribuidoras de combustíveis fósseis, que terão metas individuais de descarbonização (as regras de cálculo das metas ainda não foram definidas). Obviamente, as distribuidoras estão chiando com a nova obrigatoriedade, pois temem que a distância entre as empresas que recolhem impostos e as que sonegam, em geral de menor porte e espalhadas no interior do país, aumente.

“A obrigatoriedade da compra de CBios deve aumentar o preço dos combustíveis fósseis”, diz Sergio Massilon, diretor da Federação Nacional das Distribuidoras de Combustíveis, Gás Natural e Biocombustíveis. “Nosso temor é que esse movimento de mercado gere mais um financiamento para as atividades ilegais de algumas empresas.” As simulações do governo, porém, indicam que o preço final para o consumidor deverá cair: haveria uma redução de 2,1% no preço do etanol, estabilidade no da gasolina e um recuo de 0,3% no valor do diesel.

Em maio, o governo federal autorizou o setor de biocombustíveis a emitir debêntures — isto é, títulos de dívida — incentivadas (que não pagam impostos) por meio do RenovaBio, atacando uma das maiores dificuldades do setor de etanol: o difícil acesso ao crédito. Inicialmente, esses recursos devem ser usados para aumentar a produtividade com a renovação de canaviais, a manutenção das unidades industriais e o aumento de capacidade de usinas.

Quando o programa estiver em vigor, a previsão é que o setor receba 1,3 trilhão de reais em recursos ao longo de dez anos. “O programa vai promover um forte ciclo de crescimento econômico no interior dos estados produtores de cana. Serão gerados mais de 1 milhão de empregos”, afirma Miguel Ivan Lacerda, diretor do Departamento de Biocombustíveis do Ministério de Minas e Energia, um economista da área agrícola, originalmente da Embrapa, que foi cedido ao ministério para desenvolver o programa. “É um novo ProÁlcool, porém mais duradouro.”

Nesse clima de renascimento do setor, houve recentemente mais uma boa notícia: com a assinatura do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia, em 28 de junho, o Brasil deverá ter uma cota — de volume ainda não divulgado — com isenção tributária para vender etanol aos países da região. Hoje, para cada litro exportado, é aplicada uma tarifa de 19 centavos de euro, o que praticamente impede o acesso ao mercado europeu. No ano passado, o país mandou 43 milhões de litros à região, o que equivale a 2,5% do total exportado.

A seis meses do início do programa, as usinas aceleram para entender os meandros da nova fonte de recurso. O grupo São Martinho, da região de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, pretende certificar todas as suas quatro usinas até o fim do ano. Na última safra, a companhia processou 20,5 milhões de toneladas de cana-de-açúcar, 8% menos do que na safra anterior. “Agora precisamos correr para entregar toda a papelada e finalizar a certificação. São muitos documentos exigidos”, diz Fábio Venturelli, presidente da São Martinho.

Por enquanto, apenas uma usina colocou em consulta pública os dados para obter a certificação do RenovaBio, a Vale do Paraná, do grupo guatemalteco Pantaleon, localizada na cidade de Suzanápolis, no oeste paulista. Divulgadas em 10 de junho, as notas de eficiência energético-ambiental para a produção de etanol foram auditadas pela certificadora SGS e ficarão disponíveis por 30 dias. Só então serão enviadas à ANP. Com capacidade para moer 2 milhões de toneladas por safra, a Vale do Paraná poderia ter lucrado, segundo estimativas da NovaCana, uma empresa de informações do setor, 14 milhões de reais com a negociação de CBios na safra passada, caso o RenovaBio já estivesse funcionando.

Há muitas dúvidas sobre quanto cada usina pode ganhar. Um número que circula no mercado é que cada papel de CBio seria negociado por 10 dólares (cerca de 38,50 reais, na cotação do dia 28 de junho). Durante a fase de planejamento do programa, o Ministério de Minas e Energia chegou a divulgar uma cotação projetada de CBio de 146 reais.

“É difícil estimar o valor pelo qual será negociado, pois as distribuidoras têm um ano para cumprir a meta a que serão submetidas. Os preços, portanto, vão acabar oscilando em função da oferta e procura, como no mercado de ações”, diz Juliana Baiardi, presidente da Atvos, segunda maior produtora de etanol do país. Antiga Odebrecht Agropecuária, a empresa pediu recuperação judicial em maio e acumula 12 bilhões de reais em dívidas.

Com produção de 2 bilhões de litros, a Atvos deve ter o processo de certificação da Usina de Conquista do Pontal, no interior de São Paulo, concluído nas próximas semanas. A meta é que até o fim do ano outras sete usinas do grupo, localizadas em São Paulo, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, estejam classificadas.

Segundo maior produtor global de etanol, o setor sucroalcooleiro brasileiro já alternou fases de grandes esperanças e grandes decepções. Em 1975, com o surgimento do ProÁlcool, o governo oferecia incentivos fiscais e empréstimos bancários com juro abaixo da taxa de mercado aos produtores de cana e às indústrias automobilísticas que desenvolvessem carros movidos a álcool. Uma década depois, quando os incentivos estatais caíram drasticamente, o produto começou a faltar nos postos — colocando sob suspeita o álcool como combustível.

No começo dos anos 2000, veio uma nova chance com o carro flex, que roda com gasolina ou etanol. O consumidor gostou da novidade e hoje 65% da frota brasileira aceita ambos os combustíveis. Novamente, o setor entrou em fase de expansão. De 2003 a 2010, foram construídas 107 usinas e adicionados mais de 53 milhões de toneladas à produção de cana no país, para então o setor cair em nova crise em 2011. Resta ver se, com o RenovaBio, virá agora mais uma fase de bonança transitória ou se, finalmente, o setor encontrará um futuro mais estável.

Fonte: Exame – 8/7

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